Raimundo Sodré: de Ipirá para o mundo
Naquele 23 de julho de 1947, quase perdido na poeira do tempo, Raimundo Sodré nasceu, causando rebuliço na vizinhança. Dona Laura Brandão, sua mãe, veio de Salvador a convite da irmã, Isaura, para parir em Ipirá. Ali teria assistência familiar e inclusive espiritual pois a tia era mãe de santo de um terreiro de candomblé Angola. Parecia que o parto ia ser tranquilo e foi acertado que dona Jovita, afamada parteira das imediações, iria apanhar o rebento.
Na hora H, a parteira detectou um problema: o menino estava atravessado na barriga. Foi aquele deus nos acuda e foram chamar correndo doutor Delorme Martins. Com jeito e oração, aquele negrinho com goela de cantador logo já berrava a sua chegada ao mundo. Nascera ali, na antiga Rua Campo do Gado, “num tempo de fartura quando havia mais caatinga e menos pastaria”, pontua, saudoso, o artista.
O pai, Anacleto Pereira Sodré, era ferroviário e trabalhava como maquinista na Leste Brasileira. A mãe, Laura Rosa Brandão vivia do artesanato de renda de bilro e crochê. De um rápido romance nascera o menino, sem que os pais se casassem. Filho único de ambos. Sodré já veio assim, divido entre o sertão e o Recôncavo desde o útero. A mãe era filha de Mundo Novo, sertão da chula, no pé da Chapada Diamantina. O pai era natural de Santo Amaro, Recôncavo da Bahia, terra do samba de roda. Prosa boa, Sodré é como a própria Ipirá, situado na fronteira invisível entre o jabá e a muqueca, o mandacaru e o canavial, Lampião e Besouro Mangangá. Em cima do palco, com sua indumentária de couro e o violão pronto pra assanhar as plateias é uma carrapeta, pontuando suas canções ou atacando com seus passos de sambador.
PERCUSSÃO – Aos 8 meses o menino volta com a mãe e fica morando em Salvador. Nas férias, contudo, o menino sempre voltava a Ipirá para ficar na casa de Tia Isaura, onde se festejava a Festa de Santo Reis, ocasião em que violas e pandeiros alimentavam sua fome de saber. No terreiro havia três tambores sagrados, feitos pelo famoso músico e artesão Nelson Maleiro.
“Quando eu tinha 8 anos, estava na casa de minha tia Isaura quando Augusto Carixá, que era ogan do terreiro do Bate Folha, de Salvador, muito amigo de minha tia, me ensinou a tocar atabaque, meu primeiro instrumento”, relembra Raimundo. Outros mestres da região do Pião, em Ipirá, foram Raimundo, Diocrécio e Teófilo Preto. E aí o rapaz começou a praticar e a contar os tempos e os ritmos até que um dia uma cadência conhecida, bem cotidiana naquele local lhe captou a atenção: a batida de socar no pilão, a socagem da massa, propriamente dita. Com o restante da molecada se soltava por ali, comendo frutas na Mata da Caboranga, tomando banho no Rio do Peixe.
“Mas foi na batida do pilão que, sem querer eu já estava com a ideia inicial da música A Massa. O pilão esmagava milho, o café, mandioca, tum-tum-tum e eu ia batendo paracatá, paracatá”, relembra o músico . Das marcações iniciadas no couro da percussão, o garoto quis mais opis já ouvia outros cantores nos discos, no rádio e nos sistemas de alto-falantes.
A partir dos 16 anos, dona Laura vê que os olhos do menino brilham quando o assunto é musica e ensina Raimundo a tocar violão. Um vizinho empresta depois um violão e novas perspectivas se abrem. Estudando no Colégio Central, reduto da militância estudantil nos anos 60, consegue entrar na Faculdade de Medicina, no terreiro de Jesus, mas desiste após um mês. “Faltou dinheiro, minha mãe estava ficando velha…”
Corria o ano de 1972 e a solução encontrada pelo então estudante de medicina foi arriscar São Paulo. Lá, chegando, trabalhou em financeira, deu aula de violão e fez shows em barzinhos. Em 1974, em Santo Amaro vai morar com o pai e, tarimbado em shows de barzinhos, entra como cantor no conjunto de baile de Bento Soares e Bispão, o BS-7, cantando jovem guarda, música romântica, boleros etc.
A esta altura, seu perfil musical incluía influências locais e globais como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Altemar Dutra, Beatles, Riachão, Gordurinha, Balbino do Rojão, dentre outros. Em Santo Amaro e logo conhece dois futuros parceiros: Roberto Mendes e Jorge Portugal que eram do Grupo Sangue e Raça, juntamente com Luciano Lima, Cidinho, Beusa e Artur Dantas.
Sodré entra no grupo em 74. “Era uma proposta de música ligada ao teatro, mas eles eram muito eruditos eu que trouxe a chula pra o grupo. Roberto Mendes aprendeu a chula foi comigo e não com Caetano”, ri. Em 1975, o percussionista Djalma Correia o convidou para participar da montagem, de Sete Poemas Negros, do escritor Ildázio Tavares, transposto ao teatro, onde aparece tocando viola.
JAZZ – Após participar de uma oficina de jazz no Instituto Cultural Brasil Alemanha (Icba) em 1976, sob direção do guitarrista alemão Volker Kriguel, agrada ao diretor da instituição, Roland Schaffner. “Quando Schaffner me disse que gostou e me perguntou qual seria o nome me veio logo Reconsertão e o pessoal adorou. Portugal fez o cartaz, tipo xilogravura, e botou o preço 10 mil réis”.
O teatro chama novamente e, em 1978 o Sangue e Raça atende ao chamado do diretor João Augusto para montar “Oxente Gente, Cordel”, espetáculo premiado pelo Serviço Nacional de Teatro como o melhor do ano. Viajam para Brasília, São Paulo e no Rio de Janeiro. Na capital carioca, o grupo se desfaz. Sodré fica e volta a dar aulas particulares de violão e toca em vários lugares, como a Aliança Francesa e a Boite Dancin´Days, onde fez show em dupla com Tânia Alves.
Devido ao êxito dos shows do grupo Sangue e Raça, o artista recebe um convite de Miguel Chaves, assistente de produção de Roberto Menescal, então executivo da Polygram para fazer um teste. Deixa registrado na gravadora sete músicas, dentre elas “A Massa”, “Recado Pro Pessoal Lá de casa”, “Sonho Claro” e “Vá Pra Casa Esse Menino, Viu?”.
Ainda em 1979. ‘Quando foi um dia ele me ligou e disse os home querem falar com você. Cheguei lá e me disseram: a gente quer a Massa para o festival (MPB 80, produzido pela Rede Globo de Televisão)”. Assina, então, contrato para gravação de três LPs. Em abril de 1980, “A Massa” é classificada com aclamação na segunda eliminatória do festival e a gravadora não perde tempo, lançando o LP de estreia “A Massa”.
Ao fim do concurso, o baiano fica em terceiro, mas o hit, dele e do parceiro Jorge Portugal, já está na boca do povo. A chula de Ipirá ganhou o Brasil. O LP ganha disco de ouro, feito conseguido após a vendagem de mais de 100 mil cópias. A reboque do sucesso, o velho parceiro Djalma Correia, à época a frente do Baiafro, o convida para participar do festival Latin Percussion, em Nova Iorque. É a primeira incursão internacional do grupo.
“Coisa de Nego” é o segundo álbum, caprichado na fusão do sertão (xaxado, baiões, galope), com o Recôncavo (chula, samba-duro e samba-de-roda) e do litoral nordestino (frevo). Sodré aproveita a ocasião e faz também um trabalho de pesquisa em cima da viola de 10 cordas, tendo, também, nesse LP tocando violão e zabumba. O trabalho estrutura-se musicalmente numa colagem rítmica afro-nordestina.
Em 1981 a população de Salvador protesta nas ruas contra o aumento das passagens de ônibus concedida pelo prefeito biônico Mário Kertész. Sodré é convidado pelo prefeito para inaugurar o viaduto no Aquidaban. Faz comentários sobre a política brasileira no show e depois canta o frevo “Odara ou Desce”. Acusado de apologista da greve, fica proscrito junto ao então governador e ao prefeito. Suas músicas param de tocar nas rádios.
“Não fiz nenhum tipo de apologia à violência. A partir daí ele (ACM) não deixou mais que eu tocasse na Bahia e, mais tarde, quando foi ministro das telecomunicações, no Brasil. Ele dizia que se alguém me tocasse ele cassava a concessão”, relembra Sodré. Um ostracismo forçado, próprio daqueles tempos, se anunciou precoce na vida do chuleiro de Ipirá. A greve acabou e depressão chegou.
Abatido pela falta de repercussão do seu segundo trabalho, Raimundo Sodré sai da Bahia e vai morar em Manaus. Em 1983, ainda pela Polygram, lança “Beijo Moreno”, que não é boicotado pelas rádios e passa em brancas nuvens. Nesse ano, participa do Festival de Música Francesa, realizado em Paris, sendo o primeiro artista brasileiro convidado para o evento, iniciando um contato como psís que lhe acolheria num futuro breve.
Em 1984, a Polygram lança o compacto Pica-Pau Brasil/ Cadê Zé, ambas de Jorge Portugal e Sodré. Sem grandes espaços para fazer show, parte para o circuito universitário e alternativo. Em 87, Raimundo Sodré realiza o show “Soando raízes” com o percussionista e dançarino senegalés Mamour Bá. Em 85 participa de um show em solidariedade ao líder negro sul-africano Nelson Mandela em São Paulo (SP) e também no show no Rio de Janeiro (RJ) reunindo diversos artistas da MPB chamado “Se liga Rio”.
Em 89, faz outro show com o senegalês intitulado “Soando Raízes” e apresenta “Filho da mãe”, “Jardim do amor”, “Disparando o gatilho” e “Tupã, Tupy tá puto”. Em 1990 é convidado para tocar no carnaval de Paris e decide morar no país por. Faz contato com músicos locais e oriundos da África negra e árabe, enriquecendo ainda mais sua bagagem musical.
Sodré faz shows no circuito de bares e clubes noturnos de cidades francesas, alemãs, inglesas, italianas e suíças, aprendendo novos suingues e descobrindo semelhanças musicais jamais notadas enquanto morou no Brasil. Depois de cinco anos de muito trabalho, consegue gravar pelo selo alemão, Tropical Music, o seu quarto álbum intitulado “Real” que foi gravado em 94, mas lançado em CD no Brasil pela RGE em 1996.
A vivência europeia de Sodré ampliou seu leque estético, mas não soterrou o menino de Ipirá, que vibrava com o resfolêgo das sanfonas de Isac Reis e Roque Bananeira. Sua experiência criou novas parcerias como a do nigeriano M’Ban Zamba e a revelar temas como em “Carte de Sejour” e “La Seine” que falam sobre a necessidade de adquirir o visto de permanência e aprender um novo idioma para sobreviver num país estranho.
Após 10 anos voltando na França, Sodré volta a morar no Brasil em 2000. Três anos após o retorno grava o CD “Dengo”, lançado em 2003, sendo o quinto trabalho de sua carreira. Atualmente, ele trabalha no lançamento do sexto CD, que, segundo ele, será lançado ainda este ano e contará com novos parceiros como Jorge Franklin Marcelo Machado, Inaê Sodré e Puluca Pires, este último, mestre da representação de Ipirá no campo da poesia. A fonte de Sodré, felizmente, está longe de secar.